quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Niterói, Capital Brasileira da Desigualdade?

Niterói é o que se vê no universo do noticiário: uma cascata. 

Favela Castro Alves, Fonseca, 2018
Uma cascata que desce dos píncaros da elite juridicamente protegida às margens das praias da Baía da Guanabara para se espalhar pelas vantagens da classe média dos jardins de Icaraí, São Francisco e algumas outras ilhotas oceânicas de conforto em um mar de desigualdades. Do remanso protegido da classe média, que se incomoda com engarrafamentos e a vizinhança da multiplicação da especulação imobiliária, a cascata se dilui pelo interior da cidade, pelo mar de morros dos subúrbios escondidos, pelas vielas e ladeiras das favelas, de Ititioca ao Jacaré, de Jurujuba a Caramujo, nas escadarias das "comunidades" (como a do Castro Alves, no Fonseca), nas beiradas da cidade onde sobrevive o povo que a constrói e que a sustenta enquanto os governos muito mal a preservam.

Apesar da falsa capa da prosperidade que lhe é dada pelo dinheiro desperdiçado dos royalties do petróleo, Niterói é uma cidade com alto grau de desigualdade, basta sair da beira das praias... A grande maioria dos habitantes de Niterói precisa de serviços públicos de qualidade e de que lhe atendam os direitos básicos, em educação, saúde, habitação, e não da cooptação visando resultados eleitorais nem de obras de "embelezamento" superficial.

Segregação racial: EUA x Brasil
Apesar dos paliativos e do marketing como política de governo, que supostamente tornaria mais justa a cidade, a situação da distribuição racial, social e econômica em Niterói não muda há décadas. Segundo a Brown University e o IBGE, conforme matéria da revista Nexus, a cidade de Niterói tem o maior "índice de dissimilaridade" (ou se    ja, de desigualdade) do Brasil, conforme o quadro que publicam.


O Mapa Interativo de Distribuição Racial no Brasil (baseado nas autodeclarações do Censo) mostra, nessa questão, em Niterói, diferenciações geográficas radicais (população branca, em azul; negros e pardos, em amarelo e verde). Há áreas com população quase 100% branca, com Ingá, Icaraí e São Francisco em destaque, e há trechos de predominância total de negros e pardos, que correspondem aos morros cobertos por favelas, com destaque para o Cavalão, exatamente ao lado de Icaraí, e ao morro do Estado, entre o Centro e Icaraí.

Mapa racial de Niterói - IBGE, 2010

Esta geografia sócio racial é mortal, pelo menos para os negros e favelados. O jornal El País apresenta o drama numa matéria sobre a segregação racial na cidade, e os dados são cruéis: Em Niterói, 60% de todas as mortes violentas ocorridas em 2019 foram cometidas por agentes policiais do Estado do Rio. De todas as vítimas da polícia, 88% eram negras, de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública analisados pela Casa Fluminense. O percentual chega a ser maior que em todo o Brasil (75,4%), na região metropolitana do Rio (79%) e na capital Rio de Janeiro (81%). Em números absolutos: a polícia matou 125 pessoas no ano passado em Niterói; 110 eram negras.

Mesmo assim, há quem pense que, comparado ao Rio de Janeiro, Niterói é uma "cidade-sorriso", como diz a propaganda da prefeitura.

Será que os moradores das 120 favelas da cidade, cerca de 40.000 famílias, segundo dados do Boletim ONU/NEPHU-UFF (já, em 2020, segundo a própria Prefeitura, 204 favelas), ou seja, mais de 150.000 pessoas, quase um terço da população, diriam que vivem em uma cidade feliz ou que estão felizes na cidade?... 

Casa de pau-a-pique, Morro do Arroz - Niterói, 2016


Simplesmente continuam vivendo do mesmo jeito que viviam nos anos 1980. Ainda há casas de pau a pique no morro do Arroz, favela do complexo do Morro do Estado, a pouco mais de um quilômetro da sede da Prefeitura, tanto por dificuldade de acesso de material de construção pela estreita escada disponível, e também por mera pobreza.

Homework - Jardim Icaraí, 2019 (do blog Brasil na Miséria)

 

 

A miséria nas ruas de Niterói também é marca registrada da cidade, enquanto o dinheiro é gasto em obras espetaculares. Antes da pandemia, apenas caminhando pelas ruas do Centro e dos bairros mais ricos, não era difícil encontrar moradores e trabalhadores de rua, verdadeiros precursores dos home offices pandêmicos, de quando em vez defenestrados desses lugares pela repressão armada para atender a armações midiáticas.





Prédio do Conjunto Zilda Arns, 2016

Mas, nas favelas as propagandas eleitorais são as mesmas das campanhas anteriores, e nada muda... A menos que haja uma tragédia ambiental, o que, por mais que traumatize a opinião pública, não garante atendimento de qualidade às vítimas. Que o digam os desabrigados do Morro do Bumba e adjacências, que levaram cerca de cinco anos para serem alojados no conjunto residencial Zilda Arns, cuja construção foi de tão baixa qualidade que dois prédios tiveram que ser derrubados antes de ficarem prontos! E os que restaram não estão em condições muito melhores...  




 


Niterói, com o tempo, talvez se transforme em uma onda... 

Uma onda que virá lá do fundo do território, do chão inseguro do município, da base de um oceano de gente, uma onda que virá com toda força porque virá de um povo comprimido, uma onda que crescerá e tomará fôlego nos bairros intermediários, pela consciência que a classe média ganha enquanto se muda de residências agradáveis para prédios encaixotados, e daí essa onda crescerá até a crista poderosa que se coloca frente à baía, e é aí que se verá a espuma poluída dos poderosos, da elite que se auto-privilegiou ao tirar os ganhos do trabalho que vem do povo, uma crista que se tornou uma crosta, pela posição desequilibrada que assumiu na sociedade, e cairá desta crista em estrondosa derrota de ideias, de vontades e de poderes.

Casarão da Pres. Domiciano (esquina de R. Antônio Parreiras) - São Domingos.

Niterói não será para sempre um relicário de joias arquitetônicas que iludem a percepção do que se tem a ver. 

Niterói terá que se tornar mais justa, tão rápido quanto possível, ou não resistirá às contradições que ela própria cria.

É amargo o sorriso dessa cidade: Niterói sorri enquanto mata. 

[Fotos (e texto): Guina Araújo Ramos]

Atualizado em 01/08/2021. 

2 comentários:

  1. Esse conjunto de texto e imagens é uma pedra, que sabe ser ao mesmo tempo bruta e polida, muito bem atirada na vidraça da indiferença dominante. Uma pedra fundamental!

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  2. "Super interessante o seu artigo no estilo de crônica pois alia dados concretos e objetivos com a sua verve de escritor capaz de extrair mesmo nas situações de conflito um estilo poético. Destaco também o seu sarcasmo em relação à classe média niteroiense encastelada em seus privilégios e se esquecendo da importância de exercer uma cobrança sólida no direcionamento produtivo ao maná de dinheiro que lhe cai no colo através dos royalties do petróleo. É isso aí companheiro." >>> Recebido de Helena Reis, criadora e apresentadora do programa (além de lutadora pela causa da) "Auditoria Cidadã", na Mundial News FM. https://www.facebook.com/mundialnewsfm.com.br/

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