domingo, 27 de maio de 2012

Pedras de arrepiar


Pedra portuguesa solta - Niterói, RJ, 2012
As pedras portuguesas das calçadas cariocas são, talvez, um dos símbolos mais rasteiros do que há de inesperado e de surpreendente nas relações urbanas, estas coisas que nos causam arrepios...

É um piso de pedra trabalhoso, formado pelas menores pedras que a experiência humana aceita para este tipo de uso público. E é também uma alegoria ao esforço coletivo, que vem desde o batente dos operários em sua cadeia produtiva até o efeito final de cobertura de amplos espaços pela multiplicação de minúsculas peças.
Pedra portuguesa, peso de jornais - Botafogo, Rio, 2012


O que se valoriza no piso de pedras portuguesas é o conjunto. É o que as torna pacíficas, protetivas, construtoras. Se isoladas, são um perigo, tanto pelos riscos de acidentes quanto pelo evidente potencial de arma... 
As pedras portuguesas sugerem o destino humano: no coletivo, em igualdade de condições, respeitadas e valorizadas as diferenças, são/somos pura arte... 
Mas, quando se colocam acima do outros ou invadem os espaços alheios, a menos que possam ser úteis ao geral, só criam perigos e problemas.


Alguém terá escrito a História das Calçadas, ou dos Pisos, ou dos Passeios (eu não ousaria...), mas é certo que houve e há pisos de pedras maiores, irregulares ou não. 
Pisos de pedras: o pós-moderno e o colonial - Paço Imperial, Rio, 2012

Dois deles, por exemplo, se encontram no entorno do Paço Imperial, no Rio de Janeiro: as pedras de cantaria da época da construção do prédio, certamente batidas por escravos dos tempos coloniais, e as pedras cortadas em máquinas industriais, num arranjo recente que sugere algum improviso, mas pode ser um novo padrão urbanístico local.

Não longe dali, na sempre redescoberta Pequena África, a História, mais uma vez, mostra que há pedras sob os seus pesados pés.  
As obras de reurbanização do porto do Rio de Janeiro trouxeram à superfície, no mesmo espaço, duas diferentes calçadas neste antigo porto da cidade: as pedras do Cais do Valongo, que foi, por décadas (1750-1831), um local de chegada de escravos africanos, os "pretos novos", e, pouco acima, as pedras que o esconderam e sublimaram, as do Cais da Imperatriz, construído em 1843 sob o pretexto de receber a nova imperatriz do Brasil, D. Teresa Cristina, vinda de Nápoles, esposa por procuração de D. Pedro II.  
   
Pisos do Cais do Valongo e do Cais da Imperatriz - Rio, 2012

Pelas pedras irregulares do piso mais baixo, quase se pode imaginar a presença dos pés descalços, dos corpos feridos de escravos recém chegados... 
Pelas pedras arrumadinhas do poder imperial, um nível acima, pode-se sonhar com pés almofadados em sapatinhos de cristal, aquecidos por meias bordadas, que as pisaram levemente...

Há mesmo uma pedra no caminho?... 
Há, é claro: o ser humano sempre tropeça nas coisas!... 
E também estamos no caminho das pedras: não há pedaço do mundo a salvo da empedernida vocação (e do poder) de destruição do ser humano. 
Parece que, afinal, lá pelo final dos nossos tempos, o monumento que nós, os humanos, o terror das espécies, deixaremos no nosso exaurido planeta será exatamente aquele da canção e da História do povo brasileiro: as pedras que pisamos.

O Cais do Valongo foi declarado pela UNESCO, 
a partir de proposta do IPHAN, em 2017,
"Patrimônio Histórico da Humanidade".
Um ano depois, abandonado pela Prefeitura,
Neste 5 de Novembro de 2018,
foi tombado pelo Estado do Rio de Janeiro
.

[Atualizado em 07/11/2018]