Até os mais
fanáticos por competições esportivas ou por revitalizações urbanas já
perceberam: há alguma coisa de muito mal cheirosa no esforço da Prefeitura de
entupir o Rio de Janeiro de obras "maravilhosas"...
No Porto
Maravilha, enquanto as moradias desaparecem, apenas alguns espigões (talvez
felizmente) estão subindo, as mudanças no sistema viário pioram a mobilidade geral
e falta previsão de transporte coletivo para a área, a não ser para os turistas
do futuro bondinho do VLT. Já o governo estadual (não) faz a sua parte: se a expansão
do Metrô é fim de linha, as barcas novas não cabem nas docas nem se expandem
nas rotas. E paira sobre eles o governo federal, padrinho das jogadas dominantes
da cidade, que, apesar das traições, continua passando a mão nas cabeças dos responsáveis.
Pior do que
a incompetência suspeita das obras, muitas realizadas pelo método patético, são
os escusos interesses que, por baixo dos panos da cobertura midiática, comandam
as ações de urbanização e de mobilidade no Rio de Janeiro impostas aos cariocas
desorientados, ancoradas numa forçada urgência da aproximação das Olimpíadas.
Talvez o aspecto
mais cruel dessas ações, algumas praticamente insanas, tenha sido o retorno,
com as desculpas de praxe, às políticas de remoção de comunidades (favelas ou
não), sempre com consequências dramáticas para o povo, mas do mais alto
interesse para a chamada "especulação imobiliária". Poderíamos até, se fosse ficção e não pura realidade, imaginar um filme, "O Ataque do Bicho Papão (de Imóveis)"...
Tome-se como
exemplo o drama de Vila Autódromo. Até o
Rio se render ao "padrão FIFA", o lugar não passava de um minibairro de
Jacarepaguá, com pouco mais de 500 famílias, oriunda de pescadores, entre
outros trabalhadores, que se instalaram na foz do canal Pavuninha, à beira da
lagoa de Jacarepaguá, em terra pertencente ao Estado e ainda não “grilada” por
especuladores imobiliários, coisa tão comum na Barra da Tijuca...
Não passava
de um detalhe humano na Baixada de Jacarepaguá, área de restingas e lagoas, uma
espécie de “Pantanal carioca” isolado da parte urbanizada da cidade por
montanhas e florestas.
Nos anos
1970, ao lado da comunidade construíram um autódromo, o qual, apesar de
cuidadosamente fechado por alto muro, demandava serviços e até lhe deu nome:
Vila Autódromo. Nas três décadas seguintes, com a cidade se espalhando para a região,
com avenidas, prédios, shoppings etc, ganhou ruas definidas, comércio e igrejas
etc, mas sem tráfico nem milícias... Nas décadas seguintes, governos sensíveis
às carências populares concederam a seus moradores a posse dos terrenos, e por
99 anos!… Aliás, há muito tempo o local foi definido, pela própria Prefeitura do Rio de Janeiro, como Área de Especial Interesse Social, o que significa que deve ser ocupado predominantemente por habitação de população de baixa renda.
Parque Olímpico invade V. Autódromo - Foto: Guina Araújo Ramos, 2015 |
A princípio, parecia que Vila Autódromo não seria prejudicada, foi respeitada pelo projeto vencedor da construção do Parque Olímpico.
Porém, por
trás dos Jogos e abençoado pelo grupo político que governa o Rio de Janeiro ("Olimpíadas serve para fazer qualquer coisa", chegou a dizer o prefeito), vieram os
interesses imobiliários.
Vila Autódromo foi incluída na área a ser entregue às construtoras, parte do generoso pagamento pelas obras do Parque Olímpico, transformando paz em tragédia, o mesmo "pacote imobiliário" que atingiu o ex-Autódromo:
Vila Autódromo foi incluída na área a ser entregue às construtoras, parte do generoso pagamento pelas obras do Parque Olímpico, transformando paz em tragédia, o mesmo "pacote imobiliário" que atingiu o ex-Autódromo:
"Hoje o espaço pertence ao Consórcio Rio Mais. Isto
aconteceu num passe de mágica, através de uma PPP (Parceria Público Privada)
espúria onde a Prefeitura do Rio concedeu o uso do que não era dela, mas sim do
Estado do Rio de Janeiro, ao tal Consórcio. Tudo isto em troca apenas das obras
de infraestrutura do mencionado Parque. (...) Formado pelas construtoras
Andrade Gutierrez, Odebrecht e Carvalho Hosken, este consórcio, no fundo,
pretende fazer do local uma cidade para poucos." (in O que é o Consórcio Rio Mais)
As
Olimpíadas se aproximam, o negócio está feito, é preciso entregar o combinado:
as empreiteiras querem os altos lucros da construção de condomínios para a
classe média.
Contra este poder, Vila Autódromo tem apenas o direito dos seus
moradores àquele pedaço de terra. Da luta dos moradores, resultou a elaboração do
Plano Popular de Vila Autódromo, com apoio técnico de universidades públicas
(UFF e UFRJ), uma proposta alternativa de urbanização, muito mais barata do que
as remoções. Um projeto com qualidade suficiente para ganhar, entre 170 candidatos, o Urban Age Award 2013, patrocinado pelo Deutsch Bank e prestigiado pela London School of Economics, um prêmio totalmente desconsiderado pela Prefeitura (seria entregue no Palácio da Cidade, mas cancelaram o evento...).
Vila Autódromo resiste! - Foto: Guina Araújo Ramos, 2015 |
Vive-se no Rio de Janeiro a "microditadura" das irmandades e/ou famílias
locais, que dominam mais que quatro poderes... Insuflado pelas cobranças da
mídia, que lhe é parceira (mas também das empreiteiras), o Prefeito Eduardo Paes, afrontando até a Constituição, as decisões judiciais e a opinião pública, mantém sua ação brutal (com
assédio, astúcia ou violência) no sentido de forçar a remoção completa da comunidade. Assim, conseguiu que uma parte se mudasse para apartamentos (que foram, na verdade, comprados) de um novo conjunto residencial ali perto, que já tem problemas, por má qualidade de construção; e que outros aceitassem indenizações, na maioria insuficientes (exceto as dos negociantes da área). Apesar dessas manobras da Prefeitura, um grupo de cerca de 170 famílias, dentre as mais de 500 originais, continua resistindo e pretende permanecer, o que é direito seu.
"O povo que se dane!", parece ser o lema...
Outros diriam: "É o dinheiro, otário!"...
Outros diriam: "É o dinheiro, otário!"...
Afinal, o negócio é de alto nível: políticos interessados na
venda da cidade, empresas buscando faturar o máximo, esquemas internacionais
explorando paixões esportivas… E na outra ponta, no lado que dói, algumas
dezenas de famílias, que apenas querem continuar a viver sua vida, criar seus
filhos no lugar onde cresceram.
Nas fotos,
o convívio amargo dos moradores de Vila Autódromo com a destruição cotidiana, vinda
justamente das autoridades que deveriam protegê-los…
E o grito lancinante da sua resistência, expresso em pichações nas ruínas dos lares destruídos pela Prefeitura do Rio de Janeiro, esta cidade duvidosamente olímpica…
Apesar de tudo, Vila
Autódromo vive!
Fotos: Guina Araújo Ramos, 2015
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